Contação de histórias. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA Foto: Jaime Carvalho, 2021. |
O quilombo Patos do Ituqui,
localizado nas mediações do lago Maicá, em Santarém – Pará, tem suas reminiscências históricas coloniais que
remontam à fazenda escravocrata Taperinha. As experiências de sofrimento e
trabalho escravo inflingida às famílias negras escravizadas até o final do
século XIX na região do planalto santareno ainda possuem reverberações nos dias
atuais.
“A
avó de vocês, Maria de Lourdes, nasceu em Taperinha. Os pais dela eram
escravos. Quando foi vendida a Taperinha, acabou a escravatura. Aí ficaram eles
como escravos...sempre ficaram lá”.
“Ela
mandou que fossem embora, não deu remo, não deu nada. Eles foram empurrando a
canoa de vara nesse Maicá, nesse Iayá...depois ela mandou tacar fogo nas casas
deles”.
“Depois
que eles foram expulsos da Taperinha, se acamparam na ilha do Marajó. O seu
Lauro sabendo que eles estavam de bebê novo, disse pra eles escolherem um lugar
nos limites dele. Eles demoraram três dias cortando picada aí nesse Maicá, até
chegar aqui”.
“Seu
Lauro perguntou pra eles o que tinham achado mais bonito aqui. Ele falou: ‘Dotô,
o que eu achei bonito nesse lugar são esses patos’. Assim surgiu o nome. Primeiro
‘os Patos’, depois só ‘Patos’. ‘Então o nome desse lugar vai ser Patos’”.
(Seu Tobias, Quilombo Patos do
Ituqui)
Narrar a história de Patos do
Ituqui é trazer à tona um pouco da narrativa de escravidão ocorrida na fazenda
Taperinha. É olhar para o passado através da perspectiva dos filhos e filhas
daqueles e daquelas que foram escravizados ou estiveram em trabalhos análogos à
escravidão até o século passado.
“A
gerente de lá mandou chamar o papai. Ela queria castanha nova (castanha do
Pará). Queria que ele trepasse na castanheira pra pegar a castanha. O papai disse que não porque nunca tinha
trepado e não sabia subir na castanheira. Ela falou que ele tinha que ir: ‘Não,
tem que ser agora, tem que ser agora!’ Aí, ele meio cismado, trepou até um
pedaço, quando ele não aguentou mais, ele se jogou de lá. Nessa jogada dele,
ele se quebrou todinho. Eles não deram assistência, só disseram pro meu avô vir
buscar o papai”.
(Seu Tobias, Quilombo Patos do
Ituqui)
Relatos chocantes como esse do pai
de Seu Tobias que aos 37 anos foi persuadido a fazer o que não queria por conta
de sua condição de “trabalhador” e dependente da fazenda Taperinha o levaram a
esse episódio trágico que o levou à morte trinta anos depois em decorrência de
inúmeras complicações dessa queda e de um câncer. Foram 30 anos de sofrimento
ocasionados por esse episódio em pleno século XX.
GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E
MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI, mas do que simplesmente – o que não é
simples – trazer memórias, algumas delas de sofrimento, é uma iniciativa de
mostrar o quanto as famílias negras conseguiram resistir e lutar contra a
escravidão e, hoje, através dessas narrativas conseguem articular e consolidar
sua identidade, sua ancestralidade, por meio da contação de histórias realizada
pelas pessoas mais idosas e adultas junto às crianças do quilombo.
“Quando
vocês crescerem, vocês vão contar essas histórias como eu falei pra vocês. Já tão
tudo sabendo”
(Seu Tobias, Quilombo Patos do Ituqui)
Algo muito presente nas narrativas
são o desejo de alcançar os direitos que lhe cabem, principalmente o
territorial. Cada conquista de direito é celebrada e lembrada com muito orgulho
e isso é transmitido para os mais jovens.
Família Almeida. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA Imagem: Jaime Carvalho, 2021. |
“É
importante pra nós aprender a ocupar os
nossos espaços. Isso daí a gente vem trazendo. Como os nossos antepassados não
tiveram esses direitos, nós estamos conquistando eles...”
“Sabendo
a história, lá atrás, dá cada vez mais
vontade de lutar e ocupar nosso espaço, porque lá atrás, alguém pagou o preço
por isso e não é nada mais que justo a gente ocupar nossos espaços e conseguir
nossos direitos”
(Gilmar Nogueira, Quilombo Patos do
Ituqui)
Patos do Ituqui é um quilombo
vocacionalmente conflitivo em decorrência de sua trajetória histórica. Sua questão
territorial continua incomodando a muitos a ponto de inflingir ameaças de morte
a uma das lideranças do quilombo até pouco tempo. No entanto, também é um lugar
de quilombolas sempre agradáveis e acolhedores, entre eles o prestimoso “Seu
Tobias”, sempre disposto a conversar e contar inúmeras histórias a quem chega
ao quilombo.
O griô Seu Tobias. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA Foto: Jaime Carvalho, 2021 |
Com uma rica biodiversidade, mesmo
cercado de latifúndios, as águas do lago Maicá que banham o quilombo, é um
convite à parte para o desfrute de um refrescante banho do grande trapiche, em
dias ensolarados do inverno amazônico. E não é só isso que é rico. Há muitas
histórias fruto da experiência do cotidiano que os quilombolas aprenderam com
seus antepassados e que vem sendo repassadas de pais para filhos, como podemos ver
adiante.
“Eu
quando criança, vi a minha mãe...ela saía pra lavar roupa no igarapé e aí
quando era final de semana se juntava muitas mulheres, desciam pro igarapé pra
lavar roupa e a gente descia pra ficar junto...Tinha uma senhora que o esposo
dela não ligava muito pra ela, pra casa, pra família, ele não se ligava muito. E
aí ela descia pra lá também pra lavar as roupas dela. Como ela não tinha o
sabão pra lavar as roupas dela e era muita criança que ela tinha, era muita
roupa. Aí ela saia pedindo. Ela dizia pras amiga, colegas lá: ‘Ô minha mana, me
dá uma passada do teu sabão aí?’ E assim ela ia dizendo pras outras...até que
ela ia conseguindo lavar todas as roupa dela. Aí as outras amigas às vezes
diziam: ‘Mas ela não trouxe sabão, coitada! Vamo dá pra ela o sabão’. E assim
ela conseguia lavar e manter as roupas dos filhos dela limpa”.
(Célia, Quilombo Patos do Ituqui)
Ano passado a ARCQUIPATOS –
Associação Remanescente da Comunidade Quilombola de Patos do Ituqui foi
contemplada pela Lei Aldir Blanc de emergência cultural, como espaço cultural,
no município de Santarém, e por meio ação GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E
MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI vem demonstrando um pouco de sua produção
cultural e dos saberes compartilhados pelos seus griôs, mestres e mestras do
saber, da contação de histórias sobre o quilombo, que em breve será mostrando
em forma de etnodocumentário. É por meio deles e delas que a identidade
cultural do quilombo se reafirma e se consolida cotidianamente.
Banho do trapiche. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA. Foto: Jaime Carvalho, 2021. |
O etnodocumentário GRIÔS DA TERRA -
ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI é uma produção da
ARCQUIPATOS em parceria com o Ponto de Cultura Kizomba e a Federação das
Organizações Quilombolas de Santarém – FOQS e com o apoio da Lei Aldir Blanc –
Pará, implementada pela Secretaria de Estado de Cultura do Pará (SECULT), em
âmbito local por meio da Secretaria Municipal de Cultura de Santarém e em
âmbito Federal por meio da Secretaria Especial de Cultura e Ministério do
Turismo.
Por Aldo Luciano Corrêa de Lima[1]
[1] Antropólogo; Produtor Cultural; Coordenador
do Ponto de Cultura Kizomba e assessor de projeto da Federação das Organizações
Quilombolas de Santarém – FOQS.
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