domingo, 6 de junho de 2021

GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI

 

O griô Tobias e as contações de histórias . Quilombo Patos do Ituqui, 2021.
Contação de histórias. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA
Foto: Jaime Carvalho, 2021.

O quilombo Patos do Ituqui, localizado nas mediações do lago Maicá, em Santarém – Pará,  tem suas reminiscências históricas coloniais que remontam à fazenda escravocrata Taperinha. As experiências de sofrimento e trabalho escravo inflingida às famílias negras escravizadas até o final do século XIX na região do planalto santareno ainda possuem reverberações nos dias atuais.

“A avó de vocês, Maria de Lourdes, nasceu em Taperinha. Os pais dela eram escravos. Quando foi vendida a Taperinha, acabou a escravatura. Aí ficaram eles como escravos...sempre ficaram lá”.

“Ela mandou que fossem embora, não deu remo, não deu nada. Eles foram empurrando a canoa de vara nesse Maicá, nesse Iayá...depois ela mandou tacar fogo nas casas deles”.

“Depois que eles foram expulsos da Taperinha, se acamparam na ilha do Marajó. O seu Lauro sabendo que eles estavam de bebê novo, disse pra eles escolherem um lugar nos limites dele. Eles demoraram três dias cortando picada aí nesse Maicá, até chegar aqui”.

“Seu Lauro perguntou pra eles o que tinham achado mais bonito aqui. Ele falou: ‘Dotô, o que eu achei bonito nesse lugar são esses patos’. Assim surgiu o nome. Primeiro ‘os Patos’, depois só ‘Patos’. ‘Então o nome desse lugar vai ser Patos’”.

(Seu Tobias, Quilombo Patos do Ituqui)

 

Narrar a história de Patos do Ituqui é trazer à tona um pouco da narrativa de escravidão ocorrida na fazenda Taperinha. É olhar para o passado através da perspectiva dos filhos e filhas daqueles e daquelas que foram escravizados ou estiveram em trabalhos análogos à escravidão até o século passado.

“A gerente de lá mandou chamar o papai. Ela queria castanha nova (castanha do Pará). Queria que ele trepasse na castanheira pra pegar a castanha.  O papai disse que não porque nunca tinha trepado e não sabia subir na castanheira. Ela falou que ele tinha que ir: ‘Não, tem que ser agora, tem que ser agora!’ Aí, ele meio cismado, trepou até um pedaço, quando ele não aguentou mais, ele se jogou de lá. Nessa jogada dele, ele se quebrou todinho. Eles não deram assistência, só disseram pro meu avô vir buscar o papai”.

(Seu Tobias, Quilombo Patos do Ituqui)

 

            Relatos chocantes como esse do pai de Seu Tobias que aos 37 anos foi persuadido a fazer o que não queria por conta de sua condição de “trabalhador” e dependente da fazenda Taperinha o levaram a esse episódio trágico que o levou à morte trinta anos depois em decorrência de inúmeras complicações dessa queda e de um câncer. Foram 30 anos de sofrimento ocasionados por esse episódio em pleno século XX.

GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI, mas do que simplesmente – o que não é simples – trazer memórias, algumas delas de sofrimento, é uma iniciativa de mostrar o quanto as famílias negras conseguiram resistir e lutar contra a escravidão e, hoje, através dessas narrativas conseguem articular e consolidar sua identidade, sua ancestralidade, por meio da contação de histórias realizada pelas pessoas mais idosas e adultas junto às crianças do quilombo.

“Quando vocês crescerem, vocês vão contar essas histórias como eu falei pra vocês. Já tão tudo sabendo”

(Seu Tobias, Quilombo Patos do Ituqui)

 

Algo muito presente nas narrativas são o desejo de alcançar os direitos que lhe cabem, principalmente o territorial. Cada conquista de direito é celebrada e lembrada com muito orgulho e isso é transmitido para os mais jovens.

Família Almeida. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA
Imagem: Jaime Carvalho, 2021.


“É importante  pra nós aprender a ocupar os nossos espaços. Isso daí a gente vem trazendo. Como os nossos antepassados não tiveram esses direitos, nós estamos conquistando eles...”

“Sabendo a história, lá atrás,  dá cada vez mais vontade de lutar e ocupar nosso espaço, porque lá atrás, alguém pagou o preço por isso e não é nada mais que justo a gente ocupar nossos espaços e conseguir nossos direitos”

(Gilmar Nogueira, Quilombo Patos do Ituqui)

 

Patos do Ituqui é um quilombo vocacionalmente conflitivo em decorrência de sua trajetória histórica. Sua questão territorial continua incomodando a muitos a ponto de inflingir ameaças de morte a uma das lideranças do quilombo até pouco tempo. No entanto, também é um lugar de quilombolas sempre agradáveis e acolhedores, entre eles o prestimoso “Seu Tobias”, sempre disposto a conversar e contar inúmeras histórias a quem chega ao quilombo.

O griô Seu Tobias. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA
Foto: Jaime Carvalho, 2021


Com uma rica biodiversidade, mesmo cercado de latifúndios, as águas do lago Maicá que banham o quilombo, é um convite à parte para o desfrute de um refrescante banho do grande trapiche, em dias ensolarados do inverno amazônico. E não é só isso que é rico. Há muitas histórias fruto da experiência do cotidiano que os quilombolas aprenderam com seus antepassados e que vem sendo repassadas de pais para filhos, como podemos ver adiante.

“Eu quando criança, vi a minha mãe...ela saía pra lavar roupa no igarapé e aí quando era final de semana se juntava muitas mulheres, desciam pro igarapé pra lavar roupa e a gente descia pra ficar junto...Tinha uma senhora que o esposo dela não ligava muito pra ela, pra casa, pra família, ele não se ligava muito. E aí ela descia pra lá também pra lavar as roupas dela. Como ela não tinha o sabão pra lavar as roupas dela e era muita criança que ela tinha, era muita roupa. Aí ela saia pedindo. Ela dizia pras amiga, colegas lá: ‘Ô minha mana, me dá uma passada do teu sabão aí?’ E assim ela ia dizendo pras outras...até que ela ia conseguindo lavar todas as roupa dela. Aí as outras amigas às vezes diziam: ‘Mas ela não trouxe sabão, coitada! Vamo dá pra ela o sabão’. E assim ela conseguia lavar e manter as roupas dos filhos dela limpa”.

(Célia, Quilombo Patos do Ituqui)

 

Ano passado a ARCQUIPATOS – Associação Remanescente da Comunidade Quilombola de Patos do Ituqui foi contemplada pela Lei Aldir Blanc de emergência cultural, como espaço cultural, no município de Santarém, e por meio ação GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI vem demonstrando um pouco de sua produção cultural e dos saberes compartilhados pelos seus griôs, mestres e mestras do saber, da contação de histórias sobre o quilombo, que em breve será mostrando em forma de etnodocumentário. É por meio deles e delas que a identidade cultural do quilombo se reafirma e se consolida cotidianamente.

Banho do trapiche. Quilombo Patos do Ituqui. Santarém/PA.
 Foto: Jaime Carvalho, 2021.

O etnodocumentário GRIÔS DA TERRA - ANCESTRALIDADE E MEMÓRIA DO QUILOMBO PATOS DO ITUQUI é uma produção da ARCQUIPATOS em parceria com o Ponto de Cultura Kizomba e a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém – FOQS e com o apoio da Lei Aldir Blanc – Pará, implementada pela Secretaria de Estado de Cultura do Pará (SECULT), em âmbito local por meio da Secretaria Municipal de Cultura de Santarém e em âmbito Federal por meio da Secretaria Especial de Cultura e Ministério do Turismo.

 

 

 

 

 

Por Aldo Luciano Corrêa de Lima[1]

 



[1] Antropólogo; Produtor Cultural; Coordenador do Ponto de Cultura Kizomba e assessor de projeto da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém – FOQS.

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